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fiquei com tanta raiva que até consegui escrever
O homem levanta, cambaleia até o banheiro e, tateando, gira o registro da torneira. O barulho do jato d’água, uma surpresa que ele mesmo preparou milissegundos atrás, o acorda antes que a água mesma, meio gelada, encontrasse seu rosto amassado de travesseiro. Lembra também que precisa mijar. A camisa espera estendida na cadeira, impecável, porque ele é um desses homens que têm reuniões importantes e às vezes até viajam para tê-las. Não gosta muito de pegar os voos da madrugada, porque um de seus maiores prazeres é o de abrir o pacote plástico que envolve os sabonetes do hotel, parecendo um doce proibido, um tablete cheiroso que ele precisa se segurar muito pra não morder com vontade. Mas na firma, agora, tem um estagiário novo que faz as compras de passagem, e o filho da puta é tão eficiente que acha voos muito baratos e com conexões muito bem encaixadas no horário comercial, parece que tem algum contato na companhia aérea. Daí ele tem que acordar e cambalear e deixar a camisa correndo riscos na cadeira da mesa de jantar, na rota de colisão das crianças. Muito diferente do que preferia, que era chegar no hotel, pensar no que tanto os atendentes batem naqueles teclados se ele já tinha fornecido todos os dados necessários na reserva, confirmar com orgulho que ele é ele mesmo, visita a trabalho, um homem importante, e depois chegar no quarto, abrir os armários, olhar para os cabides completamente vazios, um armário que pode esconder qualquer coisa. Um armário que acomodaria qualquer vida que ele decidisse ter naquele intervalo entre a reunião de trabalho e a volta pra casa. Era ali que ele preferia estender a camisa impecavelmente branca e caprichosamente passada, depois tomar um banho bem demorado, pensar em comer sabonete, sentir o cheiro de algodão quase queimado que vinha da toalha irremediavelmente branca e deitar nos lençóis confortavelmente brancos, pra se espalhar bem na cama. Gostava de deitar pra dormir sem pensar que o sono teria que ser cortado na madrugada, ainda que de vez em quando isso acontecesse, em casa ou mesmo no hotel, uma insônia besta, alguma coisa sobre a reunião que fica martelando na cabeça. Dessa vez, o sono foi cortado, e tava gostoso, e por isso ele cambaleou meio sem vontade. Chega como sempre no aeroporto que parece sempre o mesmo, gente sentada com bagagem em volta, criança chorando, uma moça que corre desabalada com duas malas e uma expressão de desespero tentando argumentar com os funcionários da companhia aérea. Ele tem tempo e não mais que uma mochila na mão, a viagem é de bate-volta e os materiais já foram todos enviados para o cliente. Sente saudade de despachar bagagens, duas de trinta e dois nas últimas férias com a família toda, uma de vinte e três nas viagens meio mochileiras que fazia com os amigos antes disso. Nessas ocasiões, também teve tempo. Já acomodado na 9B, dedica-se a outro de seus prazeres secretos: mirar quem entra na aeronave e fazer conjecturas estapafúrdias sobre qual seja a vida daquelas pessoas. Senhora aposentada indo visitar os netos. Mula de tráfico. Esposa troféu. Marombeiro que mama no sigilo. Aquele ali deve puxar fumo. Depois de cada aposta narrativa daquelas, torce para a pessoa não sentar ao seu lado, para não correr o risco de puxar assunto e mudar completamente o perfil que ele já tem traçado. Com os compartimentos superiores quase todos cheios e fechados, aparece a moça desesperada, cumprimentando ofegante os comissários. Essa aí é besta. Deve ter dormido demais, deve ter achado que as regras estariam a favor dela, deve ter demorado pra arrumar as coisas. Vai ver gosta de chamar atenção, correndo pelo aeroporto, derrubando coisas, fazendo com que todo mundo olhe. A moça joga uma mochila com o zíper quase estourando no chão e entra na poltrona ao lado da sua como uma vaca atrapalhada numa estrebaria. Enquanto tenta recuperar o fôlego, se espalha para muito além do braço da poltrona, tira um tanto de coisas do bolso, tira a jaqueta, depois pensa melhor e coloca a jaqueta de novo, esse frio desgraçado da cabine. Depois pega um livro de dentro da mochila, não sem antes tirar três caixas de carimbo automático e um pacote de saquinhos de pipoca de lá de dentro, que diabo é isso, ele pensa, e o livro só vai ficar no colo da moça a viagem toda porque assim que ela o tira da mochila as luzes são apagadas para que o avião da madrugada decole e as pessoas tentem dormir. Vai ver ela não queria amassar aquela edição de Galápagos, do Kurt Vonnegut, vai ver ela é dessas pessoas que se importam mais em mostrar o que estão lendo do que em realmente ler. Ele não quer ler nada, nem ouvir música, porque é um homem sério de negócios desses que têm reuniões e viagens e vai ver precisa se concentrar, ou não consegue se concentrar em nada, porque o sono estava tão bom e foi interrompido pela mesquinhez da firma que não pode mais nem pagar um pernoite de hotel. O homem tenta não reparar que, enquanto o avião decola, a moça dá uns soluços e faz caretas que tornam a cena triste, esquisita e irresistível de olhar. Ele pensa, enquanto as lágrimas correm gostosas pelas bochechas dela, que tem sorte de não ser burro e atrapalhado. Que o estilinho de artista e descolada cobra caro dessa moça que agora está chorando na frente de todo mundo num voo da madrugada. Ele, com a camisa impecavelmente pra dentro da calça, presa por um cinto, não precisa correr e nem poderia, porque isso não fica bem num homem de negócios. O homem pensa que toda a sua previsibilidade se paga quando ele não passa por essas coisas, e que é bom não errar. Aceita uma das bolachas minúsculas do serviço de bordo para oferecê-la à moça que, agora mais calma, digita sem parar num smartphone cuja tela está toda trincada e só não se desmancha em suas mãos graças a muita fita adesiva. Vai ver derrubou numa dessas corridas que correu desesperada quando chegou cinco minutos depois de fechar o despacho de bagagem porque o horário do voo foi adiantado em dez minutos mas ela não viu, e aí teve que gastar muito dinheiro pra comprar uma mala menor na loja superfaturada do aeroporto, pra poder realocar tudo que estava na mala grande que seria despachada, mas que não foi, junto com outros cinco ou seis passageiros que também chegaram atrasados para o despacho de bagagem, o dono da loja de malas certamente faturou bem, espero que cuide da mala grande que ela deixou lá com caixas de carimbo que não couberam na malinha, nessa corrida depois de abrir mala e colocar coisa na outra mala enquanto passava a terceira mala mo crédito, nessa corrida desesperada em que quase perdeu o ar várias vezes, será que foi numa ocasião dessas que ela quebrou o celular, ele pensa, e se regozija por não ser burro desse jeito, mas ao mesmo tempo queria ler o que tanto ela escreve. Quando o avião pousa e todo mundo se espreme no corredor querendo sair ao mesmo tempo, ele se sente feliz por não ter tanta bagagem nem tanto drama, e pensa que se abrisse a porta do armário do hotel, hoje, escolheria ter essa mesma vida previsível, sem choro nem correria, e penduraria orgulhoso a camisa bem passada num daqueles cabides solitários. Despede-se em pensamento da moça que espera na esteira de bagagem e, num trote faceiro, chega ao ponto do táxi que vai levá-lo à sua importante reunião. Quando sua atenção é capturada pela visão de um Escort XR3 amarelo que encosta aleatoria e impecavelmente tocando Dire Straits dez metros à frente de onde ele está, bate uma vontade no homem, que não pensa duas vezes. Senta no banco da frente.

